21 de Novembro do Ano PassadoA Chapter by Rafael Castellar das Neves
Opa, doutor, como é que vai o senhor? Os irmãos falaram que o senhor estava me procurando. Quando o senhor passou por aqui eu tinha ido pegar uns panos que a dona Mercedes deu para a gente. Ah, obrigado pelos sacos de lixo, doutor! Serviram direitinho, está vendo? As coisas da gente já estão todas arrumadas. Daqui um pouco a gente já vai, sim senhor! Ah, os sacos de lixo que sobraram, deixei lá com o Cidão para que ele entregasse para senhor, tudo bem? Mas me diga, doutor, o senhor estava me procurando, aconteceu alguma coisa? A patroa está bem? As crianças também? O que foi?
Sim, doutor, a gente já está quase indo sim. Só vamos comer alguma coisa que seu Mané faz questão e depois nós já vamos. O senhor está meio esquisito, doutor, o que há?
Pra onde? Um dos irmãos andou conversando por aí e a gente vai descer a Bosque e dormir numa praça depois da avenida Cursino, parece que se chama João alguma coisa... Acho que é João Rodrigues... Não sei direito, só sei que é depois da Cursino. Não, a gente vai apenas dormir lá. Esse mesmo irmão conhece a região e a praça é grande, dá para a gente dormir sem ser notado, mas não dá para passar o dia, eh-he! Daí, a gente vai para um bairro lá para os lados da Anchieta. Esse irmão já ficou por lá algum tempo e disse que o lugar é um pouco tranquilo, e parece que vai dar para ficarmos por um tempo. Outra coisa boa é que mais ou menos perto do zoológico, onde também tem um lugar bom para ficar. A gente vai indo, doutor, eh-he, já está tudo no jeito! Mas me diga, o senhor está meio ansioso, o que está acontecendo?
Como assim, doutor? Uma casa de repouso? É como um asilo, não é? Mas doutor... Tudo bem, doutor, uma casa de repouso, mas não é coisa... Eu sei, doutor, eu sei... Já ouvi falar destas mantidas por igrejas, é que na verdade... Não, doutor, não vou deixar os irmãos... Está bem, doutor, pode falar, me desculpe!
Eh-he, eita doutor, o senhor foi mesmo arrumar um lugar para eu ficar em tão pouco tempo? E ainda para quase todos os irmãos, eh-he, só o senhor mesmo! É muita bondade sua. Ah, doutor, o senhor vai me desculpar, mas eu vou ter que dizer não. O senhor me desculpe, nem sei bem como explicar para o senhor, mas isso não é vida pra gente não. Eu agradeço muito ao senhor! Imagine que alguém faria isso pela gente, ainda mais assim em tão pouco tempo e com tantas coisas boas. Não, doutor, não é pelos outros irmãos... Aliás, é sim doutor, mas não é porque eles não podem ir. Eu sei que lugar algum conseguiria receber tanta gente assim de uma vez. A gente tem uma união grande, mas aqui é diferente, hora ou outra qualquer um pode se levantar e ir embora sem dizer nada, e ninguém vai dizer nada também. É diferente e não sei explicar, o jeito das coisas aqui. Mas quando digo que é por eles, é porque a vida com eles tem sido boa, doutor. Não, também não é pela igreja não. A gente tem as nossas crenças, isso é bem verdade, mas a gente não tem problemas com igrejas diferentes não. A gente acredita no Deus Todo-Poderoso e isso é tudo igual, o que muda é o jeito de olhar para tudo isso. Tem bastante gente que vem aqui ajudar a gente e que são de igrejas diferentes, isso não tem nada não. O próprio pessoal da sopa é de uma igreja diferente da do pessoal que traz roupas, o senhor sabia? Então, doutor, não quero que o senhor me leve a mal, nem que ache que sou um ingrato, mas é que a gente prefere viver assim mesmo, o senhor entende? A última coisa que quero nesse momento é perder a amizade bonita que tenho com o senhor ou deixar o senhor aborrecido comigo. A gente até já foi convidado algumas outras vezes para ir para estes lugares, mas aqui é o nosso lugar, doutor, aqui na rua. Eh-he, o senhor mudo assim deve estar pensando que eu estou louco, não é? Mas é normal, eh-he, a gente já está acostumado.
Pois claro que explicou, doutor! Aliás, é claro que vou tentar explicar, porque é difícil, eh-he, sim senhor. É que a gente prefere a vida que a gente leva aqui. Não que somos algum tipo de loucos que gostam do sofrimento. Não é isso não. É que gostamos do jeito que levamos a vida, doutor. A maioria dos irmãos aqui não veio da rua, veio da vida normal, já conheceu o mundo normal. E é por isso mesmo que eles também têm firmeza quando preferem essa vida de hoje. E olha que não foram pessoas infelizes na outra vida, não senhor, foram pessoas felizes. Mas o senhor sabe como a vida dá suas voltas e, vez ou outra, nos passa suas rasteiras. Pois bem, doutor, nestes momentos, que já contei para o senhor, a gente passa a ver tudo diferente. O conforto e o luxo que a gente tinha já não são tão importantes na nossa vida. Passam a ser coisas de outro plano. É claro que preferíamos " e até sonhamos " dormir em camas macias com lençóis limpos, mas isso passa a ter um preço: a troca de vida. Vejo que o senhor ainda está bem confuso, mas eu entendo, é para confundir mesmo, porque só entende quem vem daí para cá, se é que o senhor me entende, eh-he. Mas vamos continuando... Não há dúvida, e nem deve haver, sobre a vida no mundo em que o senhor vive ser uma vida melhor do que a nossa. Quanto a isso o senhor não se preocupe, pois não vou defender. Aqui, nesta vida de cá, a gente passa muita necessidade. Aqui o sistema é muito bruto, como se diz por aí. Aqui a gente luta por comida, e não por um salário. Aqui a gente tem de se virar para conseguir lugar para fazer as necessidades sem se expor muito ao ridículo, e não pelo conforto de toalhas limpas e papéis macios. Aqui a gente tem de se preocupar não só com o onde vamos passar a noite, mas em como vamos nos aquecer. Aqui a gente nem tem como vender a janta para comprar o almoço, porque nem a janta está garantida. Aqui, doutor, a gente não tem esperança maior do que a de amanhecer no dia seguinte e, durante este novo dia, enfim, perder as ideias. Aqui, doutor, ninguém tem dúvida de que nunca mais vai ter um aconchego como se teve um dia, o mais próximo disso será um carinho de pessoas como o senhor e das pessoas do lugar onde o senhor quer nos levar; mas doutor, o senhor nunca vai entender, e rezo para que nunca tenha de entender, como é terrível para um homem que foi alguém um dia, ter de sobreviver dos favores dos outros, da caridade dos outros... Cada um aqui, doutor, pelo menos desses irmãos, e um tanto de outros que já conheci, sabe que está nesta vida por si próprio. Cada um sabe, e talvez nunca admitam se perguntados, que está aqui pagando pelas escolhas e pelas ações de outros tempos. E também, doutor, cada um sabe que tem de passar por isso para que possa se redimir diante do Senhor, para que um dia sejam dignos de entrar em Sua morada. Cada um tem seu jeito de ver isso, cada um tem seu jeito de falar disso e cada um tem seu jeito de acreditar nisso; mas no fim, no finzinho, é tudo igual, é tudo a mesma coisa. Mas não é toda essa desgraça não, doutor. Pelo contrário, tem as coisas boas também! Eh-he, sabia que o senhor estava pensando isso, mas tem sim!
Aqui as coisas não são fáceis, doutor, mas onde são? Nada cai de graça do colo de ninguém. Tudo nesta vida tem um preço e temos que lutar, de alguma forma, para conquistar aquilo que queremos. Mas aqui, doutor, a gente tem outro tipo de luta, ou melhor, a gente luta por outros tipos de coisas. Coisas que são simples para a maioria das pessoas, como uma cama, um teto, um prato de comida... Estas sãos as coisas que a gente corre atrás o tempo todo, pelas quais a gente tem que se preocupar. Por outro lado, doutor, o senhor não sabe, e que o Senhor permita que nunca venha a saber, o que é a conquista de um punhado de comida velha! Sim, senhor, doutor, é para se assustar sim, eh-he! Esta conquista é algo que mexe com a gente de uma forma muito esquisita. Fica uma mistura de vitória com um sentimento de, como se diz, ser pior que um cachorro. Mas eu acho que é por aí mesmo, algo do instinto, sabe? Aquela coisa de bicho caçando, procurando uma toca para passar a noite. E por isso eu digo que é algo estranho, esquisito: mistura esta vitória da caça, garantia de mais alguns dias no mundo, com o sentimento de estar jogado nesta situação. Mas veja, doutor, essas são nossas preocupações! Só estas. São as únicas coisas que podem incomodar na hora em que a gente se encosta para dormir. A gente não tem que se preocupar com contas para pagar, com problemas do trabalho, com um chefe nervoso, com o trânsito, com compromissos, com a administração da casa e as vontades e necessidades da família. Deus me perdoe por dizer isso, mas é para que o senhor entenda. E o senhor também me desculpe se estou sendo grosso ao dizer isso, mas é uma verdade e o senhor há de concordar, não é? O senhor sabe muito bem quantos problemas rondam a cabeça do senhor antes do sono. Além disso, doutor, a gente pode ir onde quiser, quando a gente quiser e do jeito que a gente quiser, porque ninguém está se importando com a gente, pelo contrário, tentam nos tirar da paisagem, tentam nos ignorar " contanto que fiquemos longe, eh-he " e fingem não nos perceber. A gente é, na maioria dos casos, invisível, o senhor entende? É claro que outras vezes a gente é como assombração. Mas nos dois casos, as pessoas preferem ficar longe da gente e levamos a vida do nosso jeito. Por exemplo, doutor, alguém se importa se a gente estiver com roupa rasgada e que não combina com os sapatos que usamos? Tenho certeza que ao senhor reparam. Alguém se importa se estivermos bêbados ou loucos? Também sei que estão sempre acompanhando o seu comportamento, as coisas que o senhor fala. Quando resta algo para a gente, é o pior dos sentimentos: dó! Mas, como se diz, é uma faca de dois gumes. Este mesmo sentimento é o que permite que a gente conheça pessoas como o senhor, como dona Mercedes, como o pessoal da padaria. Entende, doutor? Deus nos abençoa mesmo em nossa penitência! Então, doutor, é dessa liberdade que eu falo, essa liberdade da gente ser o que a gente quiser, do jeito que a gente quiser e quando a gente quiser, sem se preocupar com o que qualquer um possa pensar ou venha nos falar. Não falo da liberdade de não ter muros nos cercando ou amarras nos prendendo a uma parede, mas da liberdade de simplesmente existir! E isso, doutor, garanto para o senhor, ninguém tem. Mas, tudo tem um preço nesta vida e, no caso da gente, é um troco que recebemos. Como eu disse para o senhor, isso tudo é uma grande penitência, um acerto de contas que a gente tem de passar para que a gente seja digno do Reino do Senhor. Ao menos de estarmos mais próximos dele. É algo que nos prepara para o fim da vida plena, apesar de ainda a gente ter que esperar e rezar por aquela loucura. Mas, doutor, como pode uma penitência ser tão cheia de coisas boas? Talvez a gente seja escolhido e não sofra como outros irmãos, mas isso é agora. A coisa já foi muito pior, e o senhor sabe do que estou falando? Sim, até morte! Então, doutor, o senhor vê a bondade de Deus que nos abençoa com coisas e pessoas boas até mesmo em nossas penitências? O senhor vê como na vida, por pior que esteja a situação, sempre tem alguma coisa escondida para nos fazer rir, até gargalhar? Deus sabe o que faz, doutor, as coisas acontecem e a gente que tem que se virar bem com elas. Como falei, as coisas não caem do céu, mas Deus está sempre dando uma ajudinha, só não vê quem não quer, eh-he! E nessa vida que a gente leva, doutor, fica mais fácil ver estas coisas. Não sei se é por que a gente tem poucas coisas, ou por ter mais tempo para isso, mas a verdade é que a simplicidade passa a ser mais bonita! Isso mesmo, doutor, a simplicidade passa a ser mais bonita. A gente passa a ver beleza nas coisas mais simples e que antes passavam despercebidas. E veja, doutor, estas coisas que eu falo sempre, sempre, estiveram lá; não aparecem do nada, apenas passaram a ser vistas. Parece conversa mole, mas é verdade, doutor. Um olhar atencioso para a gente, mesmo que com um pouco de desprezo ou nojo, já faz a gente se sentir menos transparente. Um bom-dia verdadeiro, já faz valer o dia, além de colocar a gente um degrau acima, eh-he. Um gesto de caridade, faz a gente ter um pouco de fé nas pessoas, não por nos fazerem bem, mas por ainda terem sentimentos, mesmo que seja só dó. Uma mãe que passa com uma criança sorridente é mais que o suficiente para nos tirar um sorriso e embelezar a vista. Um passarinho que vem beber a água suja do meio-fio, aqui, pertinho da gente, já dá a sensação certa de que Deus está olhando por nós. Uma pessoa, feito o senhor, que para, com atenção verdadeira, para me ouvir com toda essa minha baboseira e papo furado, é a maior prova de que ainda tem bondade nas pessoas e que nem tudo está perdido. Ver um irmão receber uma lambida de agradecimento, meio sem jeito, de um cachorro que passou e ganhou umas migalhas do pouco que o irmão tinha, é uma coisa linda e a maior prova da força e dignidade que as pessoas têm dentro de cada uma para continuar firme nessa caminhada sem deixar para trás ou pisar na cabeça de outros que estejam em situações piores. E ver este tipo de beleza, doutor, não é só da nossa vida não. Isso vem da simplicidade da vida, e não da miséria! Ser simples não tem nada a ver com ser um mendigo, nem ser alguém que passe necessidade e muito menos com ignorância. Ser simples é ter a própria vivência na cabeça, paciência nos nervos e, acima de tudo, bondade no coração. E somente com tudo isso é que o sujeito consegue ver todas as belezas e todos os gestos que Deus coloca na vida da gente. O sujeito simples, doutor, não apenas existe, mas também saboreia a vida!
Não sei, doutor, se consegui explicar estas coisas para o senhor. Eu tinha falado que era difícil de explicar e de entender. Não é por capacidade, não, porque eu sei que o senhor é pessoa inteligente e eu sou meio atrapalhado para explicar; mas é porque para entender isso de verdade, tem que viver assim, e sempre vou rezar para que o senhor nunca entenda isso de verdade, eh-he! Por isso, doutor, apenas vou pedir, do fundo do meu coração que o senhor acredite em mim e aceite tudo isso como verdade. Isso não tem nada a ver com orgulho, doutor. Preciso que o senhor saiba disso. Orgulho é o maior veneno para a alma do homem. Não estou falando daquele orgulho de quem sai vitorioso depois de uma longa batalha na vida, mas do orgulho daquele que não quer aceitar a ajuda das pessoas por se achar acima dos outros, por achar que aceitar ajuda rebaixa o homem. Não é nada disso, não temos isso aqui, e o sujeito que tem, não dura muito. E peço ainda mais, doutor, que o senhor entenda que não estou desfazendo do senhor, pelo contrário, sou muito agradecido e tenho muito apreço e respeito pelo senhor, acho que o senhor já sabe disso. Entendo que deve ter sido difícil para o senhor conseguir isso para a gente, entendo também que o senhor fez isso com a melhor das intenções e não quero que o senhor se sinta traído. A gente sempre será muito, mas muito grato pelo o que o senhor fez, doutor; mas nossa vida não é essa. Se o senhor estiver zangado com a gente, a gente vai entender, doutor. O senhor tem todo o direito, mas não é por mal.
Que bom que o senhor não está zangado, doutor! Isso faz um bem danado de saber.
É isso mesmo, doutor, o senhor entendeu melhor do que eu pensei, é bem isso mesmo. Fico feliz e mais tranquilo que o senhor tenha entendido assim.
É... A vida é assim mesmo... Eh-he, sim senhor!
Bom, doutor, acho que é isso. Hora de partir, eh-he,...
É, também não sou muito bom com despedidas também, mas...
Pode deixar, doutor, tomaremos cuidado sim...
Obrigado, doutor, para o senhor e para toda a sua família também...
Que é isso, doutor? Não precisa se preocupar com isso não! Imagina só, doutor, guarda esse dinheiro, a gente está bem... Mas doutor... Não precisa...
Eita, está bem, está bem, doutor, vou aceitar então. Mas é para que o senhor fique mais assossegado, eh-he. Muito obrigado, viu, doutor?
Doutor, não sei nem como explicar com palavras, mas, do fundo do meu coração, muito obrigado por tudo o que senhor fez pela gente. Que Deus dê em dobro tudo isso para o senhor. Vou lembrar do senhor todos os dias da minha vida, assim como lembro de todas as pessoas boas que passaram por ela. E também vou rezar para que Deus conserve o senhor essa pessoa boa que o senhor é, e que Ele guarde sua família, com paz e saúde, para que tudo de bom sempre aconteça para vocês. O senhor é uma pessoa de ouro, doutor, e por conseguir ser assim nesse mundo, o senhor é um verdadeiro herói!
Bom, doutor, até mais ver. Quem sabe a gente ainda se encontra nessa vida! Que Deus o abençoe e sempre o guie pelo caminho da paz! Amém, doutor, ao senhor também! Até mais ver, doutor, isso, até mais ver, sim senhor, sim senhor, graças a Deus, sim senhor, eita vida, eh-he, eita vida... © 2015 Rafael Castellar das Neves |
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Added on December 4, 2015 Last Updated on December 4, 2015 AuthorRafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
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