03 de Julho do Ano PassadoA Chapter by Rafael Castellar das Neves
Bom-dia, doutor! Mas como faz frio nessa terra, hein? Tirando este frio todo, estou bem sim, e o senhor, como tem passado? Andou sumido! Foi o frio também, eh-he? Ah, férias?! Que coisa boa! Bem merecidas, não são, doutor? E foi tudo bem? Foi passear com a patroa e as crianças? Estados Unidos? Que bacana, doutor! Aproveitou bastante, então? A patroa deve ter gostado muito. Para onde o senhor foi lá? Ah, Orlando é bacana mesmo, bastante gente nossa lá, não é? Conheço só de ouvir falar, um antigo amigo meu já esteve lá... É... Sim senhor...
Mas diga, doutor! A criançada se esbaldou lá, não é mesmo? Aproveitam tudinho, que coisa boa! Mas, sabe doutor, o senhor faz muito bem em fazer uns agrados para patroa, viu? E sempre faça isso, nunca se esqueça, por menor ou simples que seja o agrado, o senhor tem mais é de fazer. O senhor sabe como é: casamento é como uma plantinha que tem de ser regada todos os dias e pelos dois lados, viu? Se um deixar de fazer, ela começa a secar e não importa o quanto o outro tente por mais água, sim senhor! Mas sei que o senhor é um homem muito bom para ela e para as crianças, dá para ver só pelo jeito como o senhor é bom com a gente aqui. O seu Mané também fala muito bem do senhor. O que ele fala? Ah, fala que o senhor é um homem de bom coração. Ele comentou como o senhor ficou preocupado na ocasião do irmão que se foi com Deus. Seu Mané é homem muito vivido e sofrido, doutor, ele sabe das coisas! Sim senhor, ele é muito bom também. O senhor logo veja, quem se dispõe a dar café da manhã todos os dias para um bando de marmanjos sujos feitos a gente? Seu Mané vale ouro, doutor! Não só ele, a família toda dele e o próprio Cidão! Um baita homem daquele e parece uma criança de tão bom que é! Benza Deus! Mas me diga, doutor, já voltou para o batente? É duro, não é? Tem de pegar no tranco de novo. Mas vai firme, doutor: o trabalho é uma das maiores riquezas do homem, pois é o trabalho que o mantém firme na sua caminhada, por mais dificuldades que haja, o trabalho é a força do homem, sim senhor!
Eita, me desculpe, doutor! Essa tosse está bem danada, não quer saber de me deixar em paz. Sim, faz uns dias já que estou com ela. Mas não é nada demais, é só uma tosse fraca, mas chata, sabe? Não deixa a gente se esquecer dela, mas não há de ser nada. Estava pior, mas deu uma melhorada. É esse frio todo, né doutor? Nem me fale, doutor! Esse ano a coisa está feia, o frio veio com tudo mesmo. Faz tempo que não fazia um frio desses aqui. Ainda que a chuva parou, porque estava pior com ela, o frio ficava ainda mais doído. Anda uma loucura esse negócio de tempo, está tudo descontrolado, foi-se o tempo em que tínhamos chuva na época de chuva, calor da época de calor, frio na época de frio. Hoje chove em época de seca, faz frio na época de calor, tem ano que faz calor o ano todo, tem lugar de seca que está tudo inundado, lugar de frio que o povo está derretendo e passando sede. E o senhor sabe de quem é a culpa, não é? Sim, do bicho homem! A natureza está furiosa com o que fizemos com ela. Agora está vindo pra cima da gente para mostrar o que é bom pra nossa tosse, eh-he. Bagunçamos tudo, doutor. Abusamos! Essa é a palavra certa, abusamos de toda abundância que tínhamos, agora é isso: pagar pelo que fizemos! E não sei o senhor, mas para mim não tem mais jeito. Pode falar que vão diminuir poluição, fazer isso e aquilo; mas o tempo de parar já foi, agora não tem mais volta, já não tem mais conserto, pode escrever, doutor! Não é de hoje que a natureza dá sinais para a gente, mas preferimos ignorar, então, agora já foi, ela não dá mais sinais, está é fazendo o que tem de ser feito. E não ignoramos porque precisávamos para viver, mas simplesmente porque era mais fácil, mais cômodo... Mais confortável, essa é a verdade. Agora temos que aguentar essa loucura, por isso dizem o que mundo vai acabar logo... Sim senhor!
Não mesmo, doutor, tenho que admitir para o senhor que não é nada fácil enfrentar esse frio aqui do lado de fora. A gente tem que se virar de alguma forma. Durante o dia até que dá para se virar, ainda mais sem a chuva, porque daí a gente pode pelo menos andar um pouco se a coisa apertar. Mesmo porque durante o dia a gente tem que correr atrás e juntar papelão, jornal e o que a gente achar para passar a noite. E à noite a gente amontoa tudo isso, se junta e fica um encostado no outro " tudo homem macho, viu doutor, eh-he " porque um ajuda esquentar o outro. Ah, tem nossos trapos também e a nossa lona, que a gente estica e fica quase como uma barraca, eh-he. Não dá para cobrir tudo de todos, mas já é alguma coisa. Mas cada noite é uma é uma noite, se é que o senhor me entende. Não dá para contar com o que tínhamos na noite anterior. Que nada, doutor! Temos que arrumar tudo de novo no dia seguinte. Só nos fins de semana que às vezes dá para passar com as mesmas coisas. O que acontece é que o comércio começa cedo e a gente fica com esse monte de papelão e jornal amontoado e não temos onde guardar, e o pessoal acaba levando pro lixo. O que a gente consegue guardar são nossos trapos e a lona. Mas não é maldade do pessoal não, doutor. É sujeira! O senhor imagina: quem vai atravessar por uma calçada cheia de jornal e papelão usado para entrar no comércio: é lixo. O problema é o que eu falei, a gente não tem onde guardar. Mas o bom é que aqui a gente tem essa cobertura que dá uma quebrada na friagem, sabe? No relento, relento mesmo é muito pior! E na grama então? Vixi, como faz frio na grama... O senhor sabe o que é pior mesmo? Não é o meio da noite ou a madrugadinha, é quando começa a amanhecer. Sabe, lá pelas cinco e meia, seis horas, quando o sol começa a colorir o céu... Hum doutor... Essa hora é braba, a coisa aperta mesmo, não tem quem não acorde com o frio que faz. Sabe, aquele frio doído que parece agulha sendo enfiada em tudo que é nervo, em tudo que é junta da gente? E a gente não é mais mocinho, eh-he, a idade já vem chegando faz tempo. Mas o pior mesmo, doutor, pior de tudo mesmo, é o vento! Virgem Maria, esse judia, esse não tem piedade não, doutor. Corta igual faca boa, lambe as costas da gente que parece que vai abrindo a carne. É o vento que traz essa friagem braba que gripa a gente, sem o vento seria mais fácil de aguentar. O senhor veja que esse ano ele não está dando trégua nem durante o dia, e vai caindo a noite, ele vai aumentando, parece que vem de tudo quanto é lado. Tampa daqui, ele entra dali. E assim vai a coisa, ninguém dorme direito, só cochila. Mais ou menos, doutor, a nossa lona até que tem um tamanho bom, está certo que não cobre todo mundo, mas o problema é como amarrá-la. A gente escora umas ripas, amarra uns arames, mas fica muito buraco aberto e o vento entra. Fora os buracos dela mesma, né doutor, eh-he, lona batida essa!
Eita, tosse! Que coisa chata, me desculpe, doutor! Não, há de ser nada doutor, fique despreocupado. A patroa do seu Mané tem servido chá bem quentinho pra gente aqui à noite, isso já vai passar... É só friagem, nada demais, sim senhor!
Claro que pode perguntar, doutor! Que é isso, não precisa ficar assim não! Sim, a gente ganha um trocadinho aqui, outro ali. Nada que desse para as nossas necessidades, mas quebra um galhinho. Ah não, doutor, para comprar cobertor não dá não. A gente até poderia guardar, mas aí o que vai faltar é a comida. A gente ganha alguma coisa, fuça no lixo, mas qualquer trocado que aparece a gente tentar comprar coisas pra comer. E tem outra, doutor, vou contar uma coisa para o senhor que a maioria das pessoas não sabe. Não é que não sabem porque é escondido ou proibido, não sabem porque pensam que as coisas se resolvem quando elas dão um trocadinho para a gente. O que acontece, doutor, é que é muito difícil gastar o dinheiro, o senhor acredita? Pois é, doutor! Não é fácil ganhar, isso é pura verdade, mas gastar? Hum... É quase tão difícil como ganhar. Vou explicar: quem vai querer gente feia, desarrumada, suja e fedida igual a gente dentro do comércio dividindo espaço com os clientes? Pois eu responso: ninguém! Que nada, doutor, mesmo que eles saibam que a gente está com o dinheiro, eles não gostam. Uns porque pensam que a gente está querendo é roubar alguma coisa; outros porque pensam que a gente vai amolar os fregueses pedindo as coisas para eles, mendigando dentro da loja; e outros simplesmente pela aparência e cheiro da gente, que não combina com os que estão lá dentro. Então, a gente tenta comprar as coisas em lugares que o pessoal já conhece a gente e bem cedinho ou bem no fim da tarde, quando não tem muita gente. O seu Mané já sabe, a gente mostra o dinheiro e ele já manda o Cidão atender a gente aqui no canto; mas esse homem é tão santo que é difícil pegar o dinheiro da gente, ainda mais que o café da manhã, como o senhor já sabe, é garantido para a gente, eh-he, Deus abençoe eles todos! Mas o que acontece é isso, doutor, não basta ganhar o dinheiro, tem que comprar depois e aí a coisa aperta também. O senhor imagina: o sujeito passa necessidade e quando ganha um dinheirinho para aliviar as coisas, não consegue gastar por quê? Porque passa necessidade, eh-he, eita vida! A gente até tenta pedir para comprarem comida para a gente, mas o senhor sabe, o sujeito já vem dar dinheiro pra gente e ainda vamos pedir para ele comprar? Capaz de embravecer e levar o dinheiro, eh-he, e com razão! Deve pensar: “dou a mão e querem o braço!”, eh-he. Mas sabe, doutor, se as coisas melhorassem o que eu ia comprar primeiro de tudo? Uma cama, doutor, uma cama bem gostosa, bem macia e quentinha, com lençóis novos, macios e cheirosos, isso sim, com certeza, sim senhor! Nossa, doutor, já faz tempo que não sei o que é dormir uma noite em uma cama macia... Sabe, a gente se acostuma a dormir no chão duro, só com algum trapo ou papelão de forro para friagem de vez em quando. Na verdade, são tantas as coisas que a gente acaba se acostumando. O bicho homem tem essa grande diferença, doutor: ele se acostuma às coisas. É verdade que não é fácil e no começo a coisa é muito complicada e assustadora; mas a situação faz o ladrão, não é? Pois sim, ou o sujeito se acostuma ou se acostuma, não há opções. Mas se acostumar não significa esquecer, e são tantas as coisas que a gente não esquece. Cada um com suas vontades, mas o que mais me vem à cabeça é uma cama gostosa como disse para o senhor. Ah, tudo seria mais fácil se o dormir fosse mais gostoso. Uma vez sonhei com isso, doutor, o senhor acredita? Não lembro muito bem como foi, mas eu tinha conseguido comprar uma cama enorme, muito macia e com muitos travesseiros. Era tudo de um jeito que dava para dormir eu e os irmãos aqui, com muito espaço, eh-he, coisas de sonho, o senhor sabe. Mas foi bonito, eu conseguia ver a imagem da cama gigante com todos nós dormindo com caras felizes, sim senhor. É claro que não basta o dinheiro para comprar a cama, a gente ia precisar de um teto nosso para ficar. Não só para dormir, mas para guardar também. Veja o senhor como é a situação com nossos papelões, não poderíamos perder uma cama dessas de uma noite para outra. É... Bom, quem sabe um dia, não é? O bom é sonhar, doutor. Sonhar mantém o homem vivo. São os sonhos que nos fazem continuar olhando para frente. O sujeito que não tem sonhos anda de cabeça baixa, procurando migalhas dos outros para tentar dar razão à própria vida. Muito triste a vida dessas pessoas, e olha que são bastante, viu? Se o senhor parar para reparar vai entender o que estou falando, pode acreditar! Sei que agora mesmo o senhor já está se lembrando de um punhado de gente que conhece, principalmente do trabalho, não é? Então, pois logo sei...
Sim, o senhor tem razão, doutor, eu não vivi minha vida inteira desse jeito não. Eu tive sim meus tempos melhores, sabe? Naquela época dormir em cama assim era coisa de todas as noites. E o que era melhor, doutor, aninhado com minha mulher... Bom, ex-mulher... E eu gostava, sabe, não era como outras pessoas que só dão o valor quando perdem, pois eu já dava valor. Talvez tivesse que ter dado mais valor sim, mas eu nunca deixei de aproveitar cada momento com eles. Eles? Eram eles sim: minha mulher e minha menina e meu menino... Vivíamos bem, doutor. Não faltava nada para eles, eu tinha um trabalho bom, tinha carro bom, as crianças estudavam bem, viajávamos todos os anos e morávamos em uma casa muito gostosa no interior. É... Tempo bom que não volta mais... Ficam as lembranças... E as culpas... É...
Eita tossinha danada! O peito está carregado, eh-he.
Mas é isso, doutor... Nada dura para sempre nessa vida. Ela nos prega algumas peças, nos passa algumas rasteiras e acabamos caindo de boca, nos arrebentamos... E eu me arrebentei e acabei arrebentando também quem estava por perto... Só espero que estejam todos bem e vivendo bem... Rezo por isso todos os santos dias da minha vida... Penso neles todo o tempo... A cada minuto... Sim, doutor, nunca mais os vi e nem tive notícias deles, mas é melhor assim, sabe? Não é que não me importe ou não queira saber deles, é que dói demais, dá um aperto muito grande no peito, o estômago embrulha, sabe? E o principal é que se a notícia vem, ela também vai, e eu não queria que eles soubessem da vida que levo, isso é coisa minha, penitência minha... E eles também não querem saber de mim não. Por isso: assim é melhor...
Sei disso, doutor, o senhor não tem que dizer nada mesmo, é coisa da vida, a gente tem de passar do jeito que dá. Por isso falo para o senhor cuidar bem da patroa e das crianças, mas o senhor é homem bom e a gente vê que isso o senhor tira de letra, sim senhor...
Doutor, o senhor me dá licença que o Cidão está chamando. Pela hora, deve ser a sopa da mulher do seu Mané que está pronta. Coisa boa! Já importunei o senhor bastante com essas histórias bobas. Eh-he, está certo, doutor. Se o senhor diz e faz questão, dia desses eu conto direitinho toda essa história para o senhor. Só o senhor mesmo para querer ouvir essas bobagens, mas vou aceitar... Sabe, faz um pouco de bem, alivia um pouco o peso... Obrigado, doutor, eu que agradeço a companhia e paciência! Tudo de bom para o senhor e para a família, Deus abençoe todos vocês, sim senhor, assim seja...
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Added on December 4, 2015 Last Updated on December 4, 2015 AuthorRafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
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