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13 de Maio do Ano Passado

13 de Maio do Ano Passado

A Chapter by Rafael Castellar das Neves

 

Oh, doutor, não o vi chegar, como vai o senhor?

 

Não, não, eh-he, não me assustei não, aliás, já faz um bom tempo que não me assusto, ou melhor, não faz muito não, mas faz tempo que não me assusto com alguém chegando, eh-he.

 

Estou bem sim, doutor. Sim, sim, estou indo bem. Os irmãos também. Mas o que acontece? Vejo o senhor preocupado.

 

Ah, mas é bondade do senhor, muito obrigado, mas não precisa se preocupar assim não, doutor. Já estamos melhores. Vez ou outra ainda bate uma amargura aqui dentro, sabe? Na região da barriga. Mas é assim mesmo. É a saudade que deve bater e deixa a gente assim. Estes dias me peguei parado bem aqui, em pé, olhando para o lugar que armamos nossa barraca, para nossa pilha de coisas e fiquei vendo, na minha mente é claro, o irmão. Vi tudo quanto foi imagem, dele rindo, brincando com a gente, com fome, reclamando, dormindo e também aquela última cena. Acho que foi um tipo de finalização, sabe, doutor? Daquelas que a gente revê tudo de uma vez por todas para tirar de uma vez de dentro da gente.

Ah, doutor, se eu disser isso eu estaria mentindo para o senhor. Ainda escuto sim os gemidos dele, mas não acordado, só em sonhos, aliás, pesadelos, não é? Mas tem diminuído bastante, quase não tive mais. Foram mais na primeira semana depois que ele se foi. Queria mesmo era sonhar com ele um sonho em que ele viesse me contar como é que ele está, contar que a dor acabou e que ele está num lugar melhor. Não sei, parece até uma forma da gente se desculpar, como se a culpa toda fosse da gente, mas realmente é uma forma de confortar a gente que fica nessa vida.

É, o senhor está certo, ando reclamando ainda da vida, mas também isso tem diminuído. Não é proposital e nem do meu feitio ficar reclamando, mas têm horas, dias, épocas que a gente fica mais mole para essas coisas. Nesses tempos é fácil ficar chateado, é fácil sentir este vazio na barriga, é fácil blasfemar; mas confesso que não gosto nadinha disso. A gente é o que a gente faz e tem aquilo que a gente planta, e a vida tem de continuar, não é, doutor?

Se plantei esta vida? Acho que sim, doutor. Quando paro para pensar em tudo que já vivi e passei, eu entendo que plantei sim...

Não, não doutor! Não se preocupe, não foi intensão do senhor que eu sei. É como eu disse, a gente fica meio mole nestes tempos, canseira, sabe? Pode ficar sossegado.

Sim, um dia podemos falar disso tudo sim, mas já vou avisando que, do jeito que gosto de falar, a coisa vai longe, eh-he!

Ai, ai, doutor... Mas a vida é isso: uma existência rápida, igual ao piscar de olhos, da qual a gente faz o que dá pra fazer e colhe os resultados disso, bons ou ruins, mas a gente colhe, e colhe é aqui, não lá em cima. Lá em cima a gente acerta as outras contas, as daqui ficam aqui... Ah se a gente, quando criança, soubesse e ouvisse realmente o que diziam os mais velhos... Seria mais fácil, o senhor não acha?

Eh-he, é verdade, isso não vai mudar. Mas também tem outra coisa, se a gente soubesse tudinho, já de menino, não teria graça. Seria tudo igual e já sabido de antecedência. Talvez o certo fosse dizer: se a gente ouvisse a parte de cuidar direito das coisas para que elas não se virassem contra nós, sabendo que somos apenas nós mesmos os grandes responsáveis por tudo aquilo que passamos! Mas esta é mais uma das grandes peças da vida em que temos de ser pegos para entender realmente como a coisa funciona. E acaba sendo engraçado, doutor, o sujeito passa uma vida inteira de provações, de dificuldades e quando realmente aprende alguma coisa, ela já se foi e está na hora de morrer. Eita vida danada!

 

Doutor, o senhor conhece aquela doida gorda que andou por aqui um tempo, falando nisso, faz tempo que não a vejo... Enfim, ela é uma que ficava neste jardinzinho cercado de concreto do cruzamento e sempre amanhecia ali no bingo que a prefeitura fechou?

Isso, doutor, essa mesmo! O senhor já viu as coisas que essa mulher apronta por aqui? Sim, sim, mas não é só isso não, doutor! Ela é completamente doida, e quando eu disse “doida” eu não estava brincando: é doida de pedra a coitada! Bom, é esse o ponto que vou querer chegar: sobre ela ser coitada. Mas antes, quero terminar de contar das coisas que acontecem por aqui para que o senhor me entenda melhor.

Ela vai e vem, só que não sabemos de onde ou para onde. Aparece e desaparece sem mais nem menos. A única coisa é que têm dias que ela amanhece por aqui, debaixo da cobertura do bingo e, nestes dias, costuma ficar por aqui o tempo todo, perambulando por aqui durante uns três ou quatro dias. Só desaparece durante a noite alta, com todo mundo dormindo, até então, fica sentada aqui no jardinzinho. É muito estranho!

Mas enfim, doutor, quando ela está por aqui, ninguém fica sossegado. O senhor sabe, ela não tem muita noção de onde ela está, o que pode ou não fazer na frente dos outros. A coisa mais comum que ela faz, não sei se o senhor já viu, é erguer a blusa e ficar com os peitos à mostra. Doutor, ela não é nenhuma mocinha, já tem certa idade, e a falta de costumes não ajudou muito a situação dela, digo, se o senhor viu, sabe que não é uma visão agradável, pelo contrário, incomoda. Ela sempre faz isso no fim da tarde, acho que deve ser pelo calor. Ela arreganha tudo e fica lá exposta. Isso quando não sai andando para lá e para cá gritando com todo mundo, falando sozinha �" ou melhor, com as coisas que só ela vê �", sem camisa, sem nada mesmo, só de calça. E tudo balança, e ela põe e tira a mão, ela ajeita, ela coça, ah doutor, e as pessoas que estão passando têm que assistir este show, mesmo que não queiram, pois veem, e é complicado não olhar de novo, pela estranheza da cena. O senhor já viu, não viu? Eh-he, então o senhor sabe do que estou falando. Complicado, doutor!

Mas estes dias, eu e os irmãos vimos uma que também foi difícil. Para a gente não é tão difícil, mas para as pessoas que passam é. A gente acabou até rindo, porque a gente assistiu a cena, e a doida e as pessoas fazem parte dela, somos espectadores. E isso me faz lembrar o irmão que se foi, ele estava junto neste dia que vou contar e gostava muito de ver as coisas que doida-gorda fazia, eh-he. Ah, doida-gorda acabou se tornando o nome dela para nós: doida-gorda. O outro irmão tentou falar com ela um dia, mas ela não respondia coisa com coisa e de repente ergueu a blusa, eh-he, o irmão voltou fugido, rapidinho, ficou com medo de pensarem que ele estava se aproveitando, eh-he. Pois então, doutor, estes dias, devia ser umas sete horas da manhã, o povo subindo a Bosque, vindo da Caramuru, da Gravi, e com quem eles encontram? Sim, com a doida-gorda! E adivinha o que ela estava fazendo? Adivinha, doutor?

Não, pois vou dizer... Se achegue um pouco porque não quero dizer alto... Isso... Ela, doutor, ela estava sentada no cruzamento de calça arriada, ainda de camisa, e com três dedos da mão metidos na, como se diz, na “coisa” dela... É... Hum... Na “perereca” dela, doutor!

Sim doutor, três ou quatro dedos, coisa assim, e não tinha só enfiado, estava mexendo com muita força, chacoalhando tudo, doutor, devia estar machucando daquele jeito. Ah, estava machucando sim, mas a pobre nem parecia se importar com isso.

Não, não, ela não gritava e nem falava, mas roncava feito bicho, sabe? Roncava e espumava, rindo, doutor! Que tristeza de cena, a pobre lá se mexendo desse jeito, no meio da rua, que estava bem cheia de gente, e essa gente era a outra parte da cena, que foi até a parte engraçada de tudo. As caretas que essa gente fazia, uns fechavam os olhos, outros os cobriam com a mão, outros ficavam olhando como se não pudessem acreditar, uns senhores xingavam, umas senhoras chamavam tudo quanto era santo. Olha, doutor, foi um reboliço. Isso tudo deve ter durado uns vinte minutos, sim senhor, foi bastante tempo e bastante gente. Ninguém teve coragem de falar com ela e, cá entre nós, se falassem, de nada adiantaria, ela estava num mundo dela, não nesse.

A gente? Ah doutor, a gente ria... não tinha o que fazer, não queríamos rir, estávamos impressionados também, mas não tinha jeito, o riso vinha contra nossa vontade. Confesso que o sentimento de culpa vinha junto, mas foi algo tão inesperado, tão estranho, que a gente ria de toda cena, principalmente das reações de quem passava.

Então, ela parou sozinha, por conta própria. Depois que parou, ficou alguns minutos sentada, de pernas abertas, tudo à mostra e depois levantou as calças e foi para debaixo da cobertura do bingo e deitou. Devia estar cansada, o senhor sabe como é, eh-he!

Eu sei doutor, é para não acreditar mesmo, por isso não fico tão sentido por ter rido tanto. Que coisa, doutor!

Mas, com ela por aqui, sempre tem uma novidade. Estes dias, mais ou menos no mesmo horário, só que na frente do bingo, bem naquele espaço ali cercado pelas peças de concreto para separar os carros que vão descer a Bosque e os que vão descer a Caramuru... Isso, isso mesmo, bem na continuação da calçada onde todo mundo passa. Então, bem ali, ela estava peladinha, sem nada, sem nem um pedaço de pano no corpo, agachada, como se estivesse trancada no próprio banheiro, na “casinha”, sabe? Eh-he, quanto tempo que não digo “casinha”, nem lembrava mais deste tempo! Então, ela estava ali, agachada, pelada, mijando um rio e cagando tudo que tinha direito, doutor, bem ali!

Exatamente, essa é a reação que nós e todo mundo que vinha tivemos: nojo e dificuldade em acreditar. Ah, doutor, é porqueira demais! O mijo dela, daqueles primeiro do dia, forte e escuro, escorria pelo monte de merda que não parava de crescer e amolecer com o líquido. Devia estar muito fedido, sim, quase todo mundo que passava, além de desviar, tampava o nariz e fazia cara muito feita. Já pensou, doutor, o senhor indo trabalhar e dar de cara, já cedo, começo do dia, com essas cenas? O sujeito já vai atordoado para o trabalho, sim senhor! Mas preciso confessar uma coisa para o senhor, ela balançava e teve uma hora que ela quase caiu sentada em cima daquela porqueira toda, aí sim estaria feita porqueira completa. Meu Deus, que situação. Não sei como não deram parte dela, como não veio ninguém tirá-la daqui. Apesar de que já faz um bom tempo que não a vejo, vai ver fizeram isso mesmo, ou ela encontrou algo melhor ou, ainda, aconteceu algo de pior nestas sumidas que ela costuma dar. Vai saber!

Isso é verdade, doutor, ela, nesse tempo, foi a atração daqui. O pessoal na padaria do seu Mané ficava vibrando quando ela passava pelada ou aprontava outras dela, sabe como é o pessoal com umas pingas pra cabeça... Eh-he! A gente ria, o povo que passava se constrangia, xingava, desviava o caminho e vários deles já saiam do metrô ou desciam do ônibus procurando por ela, eh-he, só para saber o que ela estaria aprontando naquela hora.

É verdade, doutor, é bem isso: rir para não chorar! Eh-he.

Como ela consegue continuar gorda? Isso é fácil de responder, doutor, ela não tem noção de mais nada, então ela fuça no lixo e come de tudo, de tudo mesmo! Novo, estragado e até com bicho, doutor. Come de tudo mesmo. Isso a mantém gorda, mas deve estar carregada das doenças do bucho. Aquilo deve estar fervendo de vermes, mas, como eu disse, ela perdeu a noção da realidade e é bem nesse ponto que quero conversar com o senhor, mas antes deixe lhe contar a pior de todas!

Sim, teve uma que foi pior, e essa deu confusão. O senhor consegue imaginar uma doida dessa, que fala com gente que não existe, que grita e xinga coisas sem sentido para as pessoas que passam, que anda do jeito que anda e come as coisas que come, fazendo sexo? Eh-he, a gente também não imaginava, doutor. Nem tanto por ela, mas por quem teria essa coragem, teria que ser outro doido, mas não foi bem assim.

Devia ser umas onze e meia, meia-noite. A gente estava dormindo já. Não me lembro de que dia da semana era, mas a rua, a padaria do seu Mané e o boteco do outro lado do cruzamento estavam movimentados. Acordamos com uma gritaria de gente tentando mostrar alguma coisa que não acreditavam ver. Olhei para a padaria do seu Mané e o pessoal estava todo na porta, com seus copos, apontando para debaixo da cobertura do bingo, dizendo: “Olha lá, olha, olha!”. E riam inconformados. No meio da rua, o pessoal estava fazendo uma roda em torno da cobertura do bingo. Eu e os irmãos levantamos e fomos ver o que estava acontecendo, mas do caminho que eu fazia, já dava para ter ideia do que se tratava, só não dava para acreditar. Havia uma dessas carrocinhas puxadas por gente, que comentei esses dias com o senhor, encostada no meio fio do cruzamento e tão carregada que atrapalhava o trânsito dos carros. Debaixo da cobertura do bingo, como se não ligassem para o tanto de gente que já estava ali cercando, comentando, não acreditando e se revoltando, estava a doida-gorda de quatro pés, calça arriada e o carroceiro mandando ver nela, se é que o senhor me entende!

Ah, achei mesmo que o senhor também não se conformaria, mas estavam sim, doutor. E o negócio estava bem quente, pois eles nada se importaram com o tumulto que se formava e nem com os xingamentos que já começavam. O carroceiro é conhecido de vista, já o vi por aqui várias vezes, mas não era para tanto, né doutor? O sujeito poderia se aliviar na mão, mas preferiu ter com a doida, que não tinha noção de mais nada; mas que estava gostando ela estava, doutor, eh-he! Mas então, o pessoal ficou muito revoltado porque eles estavam fazendo sexo no meio da rua, sem se preocupar com quem passasse �" já pensou uma criança vendo aquilo, doutor? �" e, principalmente, porque o carroceiro não era nenhum doido e estava se aproveitando da doida-gorda para se aliviar. Isso tirou o povo do sério. E como a gritaria de nada adiantava, começaram a jogar coisas em cima dos dois. Jogavam bolinhas de papel, restos de frutas da quitanda ali que nunca fecha, copos e garrafas plásticas e até uma pedra voou para perto deles, o senhor acredita? Aí eles se incomodaram, se bem que demoraram, mas se incomodaram e o carroceiro quis tirar satisfação e começou a xingar todo mundo de volta, chamando todos para brigar com ele. Foi a hora que tudo ferveu e eu comecei a voltar porque estava na cara que ia acontecer uma bobagem. Mas que nada doutor, a doida-gorda, ainda de calça arriada, começou a jogar tudo que tinha por perto e até catou um dos montes de bosta dela mesma e começou a jogar em todo mundo. Acabava e ela catava mais e jogava no povo, o senhor acredita?

Pois é, doutor, estou falando! Ninguém ficou para ver. Uns demoraram um pouco para entender do que era feita a munição que os atingia, mas rapidinho se mandaram, não sobrou ninguém! Parece que uma moça, tomou uma bomba daquela bem no meio da goela que estava a toda gritando revoltada com a situação, eh-he, a doida-gorda acertou em cheio. Ave Maria, que coisa nojenta! Bom, eu mesmo não vi, isso foi coisa que o pessoal contou, vai saber, não é?

Aí foi todo mundo embora e os dois voltaram para debaixo da cobertura e continuaram com a sujeira deles. O pessoal ficou daqui da padaria ainda gritando e tirando sarro e nós ficamos vendo mais um pouco debaixo da nossa lona. Ainda ficaram mais uns minutos na brincadeira e depois vi que cada um deitou num canto. No dia seguinte, amanheceram os dois juntinhos, abraçadinhos. Tomei meu café no seu Mané e quando dei por fé, o carroceiro já tinha ido e ela estava agachada e pelada dando sua mijada matinal, como se nada tivesse acontecido, eh-he!

 

Mas o que eu queria dizer com tudo isso era que ela tem sorte!

Eh-he, sabia que o senhor ficaria com essa cara, mas vou explicar. Isso tudo o que ela faz, o que o senhor acha que é tudo isso?

Sim, isso mesmo, é loucura! Ela é louca, endoidou, pirou, em algum lugar do caminho e que nunca saberemos qual foi, mas também não importa. Sabe, doutor, há muitas coisas que a gente vê, que a gente passa aqui na rua que faz com que a gente vá dormir rezando para não amanhecer no dia seguinte, mas a gente amanhece. E em cada amanhecer, em cada momento do dia e até quando a gente tenta dormir, estas coisas ficam rodando na cabeça da gente. A cada dia que se passa aqui na rua, mais coisas destas acontecem e maior fica a quantidade de coisas para girar e atormentar a nossa cabeça. Nascer na rua já é difícil, mas se aprende a viver; agora, vir para rua depois de uma vida normal acaba com o sujeito.

Sim, doutor, essa é a realidade da vários de nós. Quase todos aqui tiveram uma vida normal um dia, mas isso acabou e o senhor não faz ideia �" e peço a Deus que nunca faça �" do que é sentir fome, muita fome e descobrir que a única coisa que lhe resta para acabar com essa fome e mantê-lo em pé é um pedaço de frango podre, encontrado no lixo, do qual temos que tirar os bichos que já se adiantaram e, com muita ânsia de vômito, roer os restos que eles deixaram. É o resto do resto, doutor. O resto de alguém que vira o resto dos vermes. O senhor não faz ideia do que é ter que arriar as calças e cagar no meio-fio, porque não se aguenta mais segurar e os intestinos estão exaustos. O senhor não faz ideia do que é passar frio com o estômago vazio, tendo que se enrolar no meio de sacos de lixo para tentar se aquecer, ouvindo os estalares que fazem o monte de vermes se lambuzando com os restos. Aprender a conviver com a fome, com a sujeira e com a doença não é nada fácil, pior que isso é descobrir que se passa por tudo isso no meio de um lugar tão grande, com tanta gente e com tanto dinheiro. Não estou julgando as outras pessoas, pois elas não têm obrigação alguma de resolver a situação da gente, mas sim todo o sistema. Tudo gira em torno do dinheiro, e disso sei que o senhor sabe muito bem. Humanidade, solidariedade e bondade já não existem mais, doutor. Existem de uma forma falsa para com pessoas que delas não necessitam. São pouquíssimas as pessoas que fazem alguma coisa de verdade, como aquelas que passam nas madrugadas frias dando sopas e agasalhos, o senhor não tem ideia de quanta diferença isso faz para a gente, ainda mais no frio. Então, doutor, este aprendizado é o pior de todos: descobrir o nada que você é, descobrir que sua dignidade foi embora há muito tempo, descobrir que não serve nem para preencher a paisagem, pelo contrário, a sujamos. O senhor sabe o que é sentir solidão numa cidade como essa? No meio da rua com tanto movimento? Pois se sente, não mais a solidão em si, mas em outro nível: o abandono. Isso tudo, todos os dias e a cada dia em um nível mais alto. É um sofrimento que só faz aumentar, doutor.

Sim, é por isso que a gente se mantém entre os irmãos. Assim a coisa fica menos insuportável, a gente tem com quem conversar, com quem se aquecer e com quem rir. Ajuda um pouco com a solidão e a sensação de abandono, pois ao menos somos mais que um. Também ajuda na hora de comer porque o que é de um, é do outro e a gente divide tudo por aqui. Mas que o senhor saiba: não é uma união comum. Estes irmãos são realmente parceiros e raros, já convivi com cada peça, doutor. De tudo quanto é tipo: cheirador de pó, fumante de pedra, matador, ladrão... Mas vai um tempo até a gente descobrir tudo isso, e não se descobre simplesmente, sempre há as perdas para garantir isso. Mas a gente não vai durar muito mais por aqui, acho que até ficamos muito mais que o normal, não sei como ninguém ainda não deu queixa ou o pessoal da “reurbanização” ainda não passou por aqui para nos levar para uma volta, eh-he.

É muito difícil, doutor, e é por isso que a gente reza todas as noites para a gente não amanhecer no dia seguinte, mas s gente amanhece! E digo que a doida-gorda tem sorte porque ela não tem mais noção da vida dela. Ela simplesmente vive como um bicho. Ela não sabe, não tem consciência do que realmente ela vive, do que ela come, do que ela faz e do que fazem com ela. Tudo isso não deve ficar na cabeça dela. Do jeito que chega, vai. Assim, ela consegue sobreviver cada dia, do jeito dela, no mundo dela. O senhor já não pensou como é que ela vê o mundo? Vai saber se na cabeça dela é tudo bonito, rosa, cheiroso e limpo? Pode ser, o senhor há de concordar.

O que eu acredito, doutor, é que Deus em sua perfeição, fez a cabeça da gente de um jeito que ela pode se desarmar, quase que desligar, pelo menos dos sentidos. Algo como um relé que desarma quando a situação se torna tão, mas tão terrível, tão insuportável, com tanto sofrimento. É uma forma do sujeito não mais sentir toda essa coisa ruim sem ter que morrer. Desarma o relé e outro mundo entra em cena e o sujeito vai vivendo neste mundo, sem ter que definhar até a morte ou tirar a própria vida. Coisa de Deus, doutor. E nestas alturas, essa coitada deve ter passado por tantas coisas horríveis, tanta desgraça que devem ter feito com ela, que o relé dela desarmou e hoje ela vive nesse mundo só dela, por isso não liga para nada ou para ninguém. E essa, doutor, é a sorte dela, ter ficado louca para não ter que suportar mais isso tudo.

Sim, doutor, é isso mesmo, já que tenho que amanhecer, que fosse na minha loucura, no meu mundo, sem tudo isso aqui, mas não enlouqueço e tenho até medo de pensar que o que passei e passo não é suficiente para enlouquecer, eu não aguentaria mais que isso não, doutor! Queria que meu relé se desarmasse, eh-he. Eu acho que é o único jeito de sobreviver, que o cérebro desliga para não ter que suportar a dor, a solidão, o descaso. Ainda que tenho os irmãos, o seu Mané,... Mas não seria nada mal ter esta loucura também na minha cabeça.

 

Mas não há de ser nada, doutor. Sei que Deus olha por nós. Tudo isso podia ser muito pior do que é, como é para a maioria. Mas Deus olha por nós. Isso tudo é uma espécie de penitência que temos que fazer pelo que já fizemos e que garantirá nossa entrada no reino do Senhor, que assim seja, amém!

 

Bom, doutor, se o senhor me dá licença, eu vou me achegar com os irmãos e dormir minha noite. Estou cansado hoje e essa conversa deve ter cansado o senhor também.

Obrigado por se oferecer, doutor, mas está tudo bem, não se preocupe. O que o senhor tem mesmo que fazer é cuidar da sua família para que este tipo de coisa não chegue nem perto deles, sim senhor. Por aqui a gente se vira, não estamos sozinhos e, como não canso de dizer, a conversa com o senhor alivia o coração de tanta amargura. Boa-noite, doutor, fique com Deus!



© 2015 Rafael Castellar das Neves


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Added on December 4, 2015
Last Updated on December 4, 2015


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Rafael Castellar das Neves
Rafael Castellar das Neves

Sao Paulo, Sudeste, Brazil



About
Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..

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