16 de Março do Ano PassadoA Chapter by Rafael Castellar das Neves
Bom-dia, doutor! Como tem passado? Que bom, doutor, eu também estou bem, graças ao bom Deus! Isso, doutor, se achegue! Eita! Como que o senhor tem passado, doutor? Faz tempo que não vejo o senhor passar por aqui. Até comentei com os irmãos sobre isso, eles disseram que também não tinham visto o senhor. Confesso que pensei que tivesse acontecido alguma coisa com o senhor, nossa mãe! Primeiro pensei que o senhor tinha ido embora. É, ido embora de mudança para outro lugar, de repente o senhor ou a patroa não gostou mais daqui, ou apareceu uma oportunidade melhor, é a vida. Mas depois, o senhor sabe como é a mente da gente, comecei a pensar bobagens: que o senhor estaria com algum problema de saúde, ou teria sofrido algum acidente, ou outras coisas que é melhor deixar pra lá, é coisa de cabeça desocupada. Ah, o trabalho! Que coisa, doutor! Pensei em tanta coisa e não pensei no mais provável, o trabalho! Mas sei como é, uma correria só, não é? Apesar de que ainda é comecinho de ano, o carnaval mal se foi, eh-he, mas trabalho é trabalho e vejo que o senhor é requerido. Mas hoje é sábado e é dia de folga, não é? ", doutor, o senhor me desculpe por me meter assim na sua vida. Agora que percebi o tanto de perguntas que estou fazendo ao senhor, que estou aqui aborrecendo e me metendo na vida do senhor, pensando e deixando de pensar aquilo que nada tenho a ver, o senhor me desculpe mesmo, doutor! Acho que me empolguei com nossas conversas e passei os limites, isso mesmo, eita, eh-he! Muito obrigado, o senhor é mesmo muito bacana, doutor.
E como foi de carnaval, doutor? Viajou? Isso mesmo doutor, tem que aproveitar para descansar mesmo. Nem só de trabalho vive o homem, mas para o trabalho e o descanso devido é preciso; e difícil, não é? Eh-he! Então o senhor deve ter escutado o fuzuê que foi por aqui. Virgem Maria, que fuzuê! O pessoal caiu na farra todos os dias, viraram as noites, esses aí têm energia para dar embora. A casa de forró ali foi só samba, nada de forró, eh-he. Bom, começou com o samba né, depois foi todo o tipo de música que essa molecada ouve, umas coisas bem esquisitas, para falar a verdade, mas a juventude é diferente agora, não é? E bebem demais, eh-he, um pior que o outro, um que nem em pé parava, queria apoiar o outro que nem andar conseguia. É verdade, doutor, a gente aqui deu muita risada, eh-he, quietinhos, mas a gente riu muito. Eu não, doutor. Não sou de carnaval não. Na verdade nunca fui, nem de criança, nem de moleque e nem de agora. Sempre achei que os dias de carnaval eram bons para tirar um descanso, assim como o senhor fez. Não gosto muito da bagunça, do monte de gente espremida tentando pular o tal do carnaval. Eu gostava um pouco era das marchinhas, mas não existe mais, isso já foi, e digo para o senhor, essa molecada aí nem deve saber ou conhecer uma marchinha sequer, pode acreditar. O que eu acho bonito mesmo são os desfiles, o pessoal capricha demais, é muito bonito tudo aquilo que eles fazem. Não deve ser nada fácil, mas quando dá, principalmente de manhã, dá para a gente ver partes dos desfiles ali no seu Mané, e é muito bonito. Ontem tinha outro homem ali contando que o desfile no Anhembi foi um dos melhores. Para falar a verdade, eu acho que foi mesmo, doutor. Assistimos uns pedaços e estava muito bonito mesmo. Na verdade eu acho que cada ano fica melhor, o pessoal aprende mais coisas, inventa mais coisas e fica tudo ainda mais bonito, uma beleza mesmo. Disso eu gosto, mas do barulho e da pulação não, eh-he. Mas também não sou daqueles que esbravejam por causa do carnaval, que falam que é coisa do demo, que é coisa de gente indecente. Nada disso, doutor, apenas não me agrada. Agrada um monte de gente e está tudo bem, cada um vai atrás do que apetece, não é? Gosto dessa palavra, eh-he. E se for ver mesmo, doutor, o carnaval até ajuda: quantas pessoas não tiram o sustento disso? O senhor veja, agora, agorinha mesmo, nesse momento que a gente conversa aqui, o senhor pode estar certo disso, já tem um montão de gente trabalhando para o carnaval do ano que vem! Pense só, um ano antes! Mal esfriaram desse e já estão preparando o outro. Então, tem esse pessoal que trabalha o ano inteiro, tem o pessoal das propagandas, o pessoal da televisão, o pessoal que atende os turistas " hotéis, guias, ônibus ", o comércio que ferve por causa dos apetrechos, tem os ambulantes que, como o senhor bem sabe, brotam do nada para tudo que é lugar vendendo tudo quanto é coisa do momento - eh-he, eita rapaziada rápida " e depois tem ainda o pessoal da limpeza e esses sim tem trabalho, mas não ganham muito, e olha que sujeira é o que não falta do carnaval. O que falta é gente para limpeza, o senhor olha ali, todo aquele monte é resto do carnaval, mas não foi a prefeitura que amontoou não, foi o pessoal do comércio. Sim, isso mesmo, doutor, por isso digo que tem pouca gente da limpeza. Bem que a prefeitura poderia contratar mais gente nessa época, aí o carnaval ia ajudar ainda mais e a cidade não ia ficar emporcalhada desse jeito. Mas as carrocinhas puxadas a gente já estão por chegar, sim senhor!
“Ai ! Barracão, pendurado no morro... pá pá pá, pápá pá pá”, essa é das boas, doutor, eh-he.
O que é que é isso, doutor? Mas... Mas, doutor... Não precisava se incomodar! Meu Deus do céu, doutor, muito obrigado! Nossa mãe, quanto tempo já não faz que eu não como um bolo. Ah é? Foi a patroa que fez? Benza Deus! Leve a ela os meus agradecimentos, doutor! Que mulher boa! Muito obrigado mesmo, nem acredito, os irmãos vão ficar contentes de comer um bolo desse hoje. E que pedação, eh-he! O certo seria eu convidar o senhor para comer com a gente, mas o senhor entende, né? Eh-he, que bom, doutor! Vou guardar aqui nas minhas coisas, para mais tarde...
Mas como tem chovido nestes dias, não é doutor? Nossa! Eu vi ali na televisão da padaria que inundou tudo quanto foi rua por aí. Diz que teve gente que perdeu carro, gente que perdeu televisão, geladeira, rádio, tudinho... Teve gente que perdeu casa e gente que perdeu gente! Credo, doutor, está tudo mudado. É frio forte no tempo de calor, quentura no tempo de frio, chuva que não acaba mais, até parece que subiram todos os rios e agora estão despencando na gente. O duro é que não ouvimos nada dos colegas que estavam fora daqui, isso não é bom. Não falo dos irmãos, mas de outros colegas que ficam por aqui. Por quê? É que notícia corre e se não correu é porque não tem quem conte. Deus os livre, mas quando é assim é porque colegas por aí devem ter se dado mal. Não gosto nem de pensar, prefiro pensar que foram para algum abrigo da prefeitura, mas não é isso que vem na minha cabeça. Eu? Não, doutor, graças a Deus nunca tive problemas com a chuvarada. Na verdade nunca dei azar de parar em lugar ruim para chuva. Aliás, que tive sorte eu tive, mas eu olhava bem também. Se eu via que o lugar era de perigo e dava para evitar, eu evitava, ainda mais se era época de chuva, agora não tem mais época para nada, eh-he! Mas têm muitos que sofrem, doutor, isso eu já vi. O senhor imagina o sujeito, trabalha como um condenado para ganhar um trocadinho de nada que nem dá para o leite das crianças direito, aí, belo dia, vem uma chuva " isso, a chuva, coisa de Deus " e ela vem com tudo, com raiva, sem dó nem piedade e devasta tudo, entra na casa do sujeito sem ser convidada e sem nem a porta ser aberta. Espalha-se, se entranha por tudo que é seco, por tudo que nem a vida que ele levou foi suficiente para pagar por inteiro, e estraga, doutor, destrói. O senhor sabe o que faz a água dentro de casa, e o sujeito fica sem nada, em minutos a vida inteira vai por água abaixo " eita trocadilho sem graça " e o que resta? Nada! Começar tudo de novo, mas de que jeito? Com que cabeça? Admiro esses que conseguem, pelo menos, se manter em pé depois de um tombo deste da vida. São heróis de verdade, esses são machos mesmo, “sujeitos homem”. Fico pensando comigo " não que eu deseje o mal de alguém, longe de mim ", mas isso só acontece com o coitado que tanto já sofreu para não ter quase nada, não acontece com o rico que já tem de tudo e mais para recomeçar sempre que precisar. Eu não entendo, doutor, às vezes vêm uns pensamentos na cabeça que tenho até raiva de mim, mas posso falar para o senhor: por que quem sofre está condenado a sofrer cada vez mais? Por que outros têm na vida tanta sorte que só faz como a desgraça do outro: cresce cada vez mais! Tento me conformar pensando que isso é coisa dos homens, do jeito que a vida é vivida; mas, doutor, a chuva é de Deus, não do homem. E é bem aqui que meu coração se aperta todo por estes pensamentos de pecado: Deus é tão ruim assim que quer que outros sofram tanto e, ainda, faz de tudo para garantir isso? Será que ele acha isso engraçado e fica brincando? Ou será que é algum castigo que o sujeito tem de pagar? Mas já conheci tanta gente boa que sofre tanto pelo o que não sei. Deus me perdoe, doutor, mas não são pensamentos que quero para mim, pensamentos que eu mesmo pense, mas eles veem do nada, sem eu querer, e parece que quanto mais quero que se vão, mais longe eles me levam! Ave-Maria, Deus me livre, não quero pensar nisso, não acredito que seja assim. Tento continuar acreditando que Deus sabe o que faz e que eu sou ignorante demais para entender as coisas, ainda mais as de Deus. Isso mesmo, Deus sabe o que faz, sim senhor, Deus sabe... E o senhor, doutor, como tem se virado com essa chuvarada? Tem sido pego no caminho? Ah sim, o metrô ajuda muito mesmo, não é? Pelo menos escapa da chuva e das enchentes, mesmo que ande um pouco devagar e cheio de gente nestes dias, mas já é um grande alívio, verdade. Mas tudo depende de onde a pessoa mora e de onde trabalha, não é? Tem muita gente que não consegue usar o metrô não, tem é que se aventurar nos ônibus, nos carros e encarar as enchentes, ficar preso no trânsito. E no ônibus é pior, não é? Porque além de ficar cheio, tem que enfrentar as enchentes; já no carro é mais gostoso, e tem cada carrão que passa aqui que deve ser mais gostoso que o sofá da casa, eh-he! Mas não é nada fácil não. Tem gente que atravessa essa cidade inteirinha para ir trabalhar, acorda de madrugada, sai tarde do serviço e ainda pega essas coisas para voltar pra casa. Chega quase na hora de acordar de novo. Não é à toa que muita gente perde a cabeça. A gente daqui percebe como ficam no fim do dia, todos nervosos, buzinando, gritando pela janela, quase atropelando todo mundo, aquela loucura. E eu pergunto para o senhor: já pensou como não ficam quando chegam em casa? Até o cachorro deve levar o que não é dele, eh-he! A gente brinca, mas é sério, hoje em dia o nervosismo e a falta de consideração, ou melhor, o nervosismo e o descaso estão mais à flor da pele. As pessoas brigam, batem, xingam e até se matam por qualquer coisinha besta. Bicho-homem, ou homem-bicho, nem sei mais... Aliás, nenhum, né? Bicho mesmo não faz assim, bicho chega da caça e, trazendo alguma comida ou não, lambe a família. Bicho não briga com outro bicho a troco de nada, briga pela toca, pela fêmea. Hoje todo mundo briga com todo mundo por nada, doutor, brigam na padaria, brigam na farmácia, brigam na banca e, principalmente, brigam no bar, eh-he! Sabe aquele bar do toldo azul, do outro lado da rua? Isso, bem na junção com a Caramuru; então, ali sai cada fecha, doutor, eh-he... O pessoal chega na animação, vai bebendo, divertindo, mas passa da cota, aí começa a gritaria, a xingação e depois vem a pancadaria e o quebra-quebra. Até facada já saiu aí e uns dizem que o sujeito morreu na ambulância, outros dizem que não morreu coisa nenhuma, mas que nunca mais aparecereu aqui. Ah, não, pode ficar tranquilo, doutor, isso faz tempo, nem eu estava por aqui, sei por que me contaram. Mas a diferença desse pessoal aí é que eles brigam hoje e amanhã estão aqui de novo, para começar tudo de novo como se nada tivesse acontecido. É, doutor, pode rir mesmo, é engraçada esta turma. O que tenho pena mesmo é daquelas famílias que sofrem com esse nervosismo: estresse, não é? Eh-he, agora tem nome chique isso, cada uma... Doença de rico, doença da moda; que eu chamo de falta de educação, falta de respeito! Não, não! Não estou dizendo que isso é só de quem está nervoso, mas a começar por aqueles que deixam as pessoas nervosas; pelo menos é assim que eu penso: existem alguns que não tem educação e nem respeito, por isso, acham que podem se colocar acima dos outros, acima dos sentimentos e da dignidade dos outros, que já têm tanto para se preocupar, bom, aí é aquela enxurrada toda que só faz aumentar quanto mais corre, e quem paga esse pato, doutor? Isso mesmo, a família, o amigo, o padeiro, o cachorro, e aí vem a bebida e outras coisas muito mais complicadas, eh-he, sim senhor. Sei bem como é isso...
Ah é, sei sim, doutor, eh-he. O senhor percebeu pelo meu jeito de falar, não foi? É doutor... A vida não é fácil não... Eu não nasci aqui na rua não... É... A gente passa por cada uma, e quando pensamos que já foi tudo de ruim, vem a vida e nos mostra que nem é o começo... Não mesmo... Sim senhor... Não, não, doutor! Não tem problema não, posso falar disso sim, que é isso? Não tenho nada para esconder e o que está feito, está feito, não tem nada que se possa fazer e não acho que precise esconder, ainda mais do senhor que tem sido tão bom comigo. Só fico meio sem-graça de aborrecer o senhor com minha história, com tanta coisa boa nessa vida, eh-he. Não, eu entendo o senhor e a sua boa-vontade, é que não é nada muito bonito para se orgulhar, mas tudo bem, claro que podemos... Opa, claro, doutor, fique à vontade, pode atender... Que é isso, doutor, não se preocupe! De verdade! Vá sim, vá atender a patroa porque ela sim merece atenção do senhor, eh-he... Sim, sim, conversamos outra hora eu conto para o senhor, sim senhor... Passe bem doutor, até mais ver!
Ah, doutor! Obrigado pelo bolo e agradeça a patroa por mim, por favor, eh-he.
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Added on December 4, 2015 Last Updated on December 4, 2015 AuthorRafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
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