11 de Fevereiro do Ano PassadoA Chapter by Rafael Castellar das Neves
Tarde, doutor! Tomando uma cervejinha, hein? Está certo, todo homem devia, por lei, ter direito a um trago depois de um longo dia de trabalho. Até a gente tem uma garrafinha guardada no meio das nossas coisas ali, eh-he, sim senhor. Só que temos que dividir em quatro, pelo menos. Por que quatro? É a quantidade de irmãos que somos hoje. Procuramos não passar disso, sabe como é, quatro é mais que suficiente, mais que isso já dá problemas. A gente está com sorte. Esta turma aí é muito boa, conseguimos dividir as coisas sem muitos problemas, é um pessoal respeitador e companheiro, sabe? Já teve vez aqui que a gente não conseguia nem repartir a comida, o senhor imagina a branquinha então, eh-he. Já foi mais complicado, saía cada briga, nossa mãe! Era um tal de um se jogar por cima do outro em direção a comida, estapeando e chutando o que aparecesse na frente ou no que se enroscasse. E o senhor sabe, a cada tapa ou chute que acertava o outro, vinha a reação, eh-he, aí era um fuzuê só, doutor. Esperto era aquele que tinha um punhado de comida pego, porque nem grão de arroz sobrava para contar história. Mas a própria natureza já ia tirando esses tipos do meio da gente, e só gente boa foi ficando e hoje estamos aí. Cada um tem seu jeito e seus lugares para tentar tirar uns trocados, uma comidinha que seja; mas todos voltam e dividem com os outros. Ninguém pergunta nada, quem quer contar conta, mas não importa, a gente sabe das dificuldades e do que a gente tem de fazer para conseguir as coisas. O que realmente importa é a irmandade que a gente tem. Quanto tempo a gente está junto? Ah, estamos juntos há uns três anos, só o mais novo que está há uns oito meses. Veja doutor, “mais novo” pra gente não é de idade, mas de chegada à irmandade, eh-he. Eu e mais dois que somos os mais velhos e estamos juntos há quase cinco anos, fomos os que ficaram juntos mesmo durante a época dos briguentos, eh-he. E tem outra, doutor, não são só os briguentos que influenciam a irmandade: o lugar também. Já andamos bastante por essas ruas, já dormimos em bastantes cantos sujos desta cidade, mas aqui é que nos ajeitamos por agora " até alguém nos tirar, eh-he ", e aqui conhecemos o resto dos irmãos que estão com a gente. Se bem que estou admirado com o tempo que estamos por aqui sem ninguém se incomodar tanto. Estamos durando bastante por aqui, eh-he. Deve ser por causa do que eu estava dizendo: dos irmãos e do lugar. Os irmãos que estão juntos são gente boa, não gostam de incomodar os outros e não ficam com porcalhada por aí. Costumamos procurar nossos cantos durante o dia, cada um tem seu jeito de se virar, isso também já disse; e mais a noitinha, no fim da tarde, nos reunimos aqui para juntar e dividir o que conseguimos, mas sempre com muita calma e cuidado para não atrapalhar a vida das pessoas, sabe doutor. Ninguém é obrigado a conviver com a gente e isso a gente sabe muito bem " irmandade boa dá nisso. Na verdade, ninguém é obrigado a conviver com ninguém, mas a gente sabe que com a gente é um pouco mais difícil, e é exatamente isso que me leva ao outro ponto que acredito funcionar o fato de a gente estar aqui ainda: o lugar. As pessoas daqui são gente boa também, a vizinhança é respeitadora e deixa a gente no nosso canto. Na verdade, muitos deles têm até amizade com a gente, sabe, de chamar pelo nome, de trazer um agrado para comer, um trago pra dividir e umas roupas para proteger. Tem um irmão nosso que toda quinta-feira ajuda aquela senhorinha, a dona Mercedes, da casinha branca descendo a Caramuru, à esquerda. Isso mesmo, doutor, branquinha e descascada cheia de plantas. Ali era um matagal, eh-he, mas este mesmo irmão deu um trato lá. Ela é muito boa, mas é fraquinha e sozinha, doutor. Não tem ninguém mais na vida. Parece que ela já foi casada e teve filho homem, mas o marido morreu de tanto beber depois de perder tudo no jogo, e o filho sumiu com uma moça que arrumou e deixou a mãe para trás, à própria sorte. Dureza, não é? Sim senhor, não é fácil não, sim senhor. Mas um ajuda o outro. Ele mexe nas plantas, carrega a compra e até varre o quintal, já pensou, doutor? Eh-he! E ela sempre arruma alguma coisa para ele comer, e dá em bastante quantidade que é para ele dividir com a gente mesmo, o deixa pegar frutas no quintal para a gente. Vez ou outra arruma uns trocados para ele, e assim a coisa vai, doutor. Sabe como é, vamos indo assim: um ajudando o outro, o outro ajudando o um, aos pouquinhos, sim senhor.
Sabe doutor, a gente preza isso nas pessoas. A gente sabe que é difícil para a pessoa sair de casa, arrumada, e parar para falar ou dar alguma coisa para gente. Já é difícil ter que nos encontrar pelo caminho. Claro que é, doutor, não há necessidade de negar isso, a gente apenas sabe que é assim que as coisas funcionam e por isso mesmo a gente presa tanto um pouco de atenção que recebemos. Por exemplo, o senhor aqui a me ouvir e comigo perder seu tempo! Tudo bem doutor, entendo e percebo que isso é natural no senhor, mas o senhor não sabe o quanto isso é raro. Tem irmão aqui que trocaria um prato de comida por dois dedinhos de prosa. A solidão é um dos grandes males do homem, doutor. Inda mais aquela que acontece no meio de tantos, sim senhor. Mas não há de ser nada. O importante é a gente manter essa fé e essa amizade, sabe, um segura o outro. Tem coisa difícil que acontece aqui, doutor. Ter alguém para prosear é um presente divino; não ter ninguém para conversar não é tão ruim se for considerado o quanto tem de gente para nos xingar e enxotar, sim senhor, nem queira saber e nem quero falar, sim senhor... O senhor veja, como tem gente boa, igual à dona Mercedes, que lhe contei, e como o senhor mesmo, doutor; mas também tem gente ruim, e muito mais, sim senhor. Sabe aquela lojinha ali, já virando a esquerda naquela esquina? Não, a outra, de cor amarela, acho que vende tecidos. Isso, essa mesma. Então, aquela lojinha é de um casal estrangeiro, parece que já estão aqui faz muito tempo, mas a gente percebe um jeito gozado deles falarem, eh-he. Tem muita palavra que não dá para entender, não sei se é o jeito de falar ou se é palavra da língua deles. Deve ser da língua deles porque fica difícil de entender, ainda mais quando eles ficam nervosos, vermelhos, sabe, e isso é fácil. Parece que estão com a garganta cheia, sabe, raspando, eh-he. Mas mesmo não entendendo as palavras, doutor, dá para entender muito bem que é braveza. Eles não gostam da gente, de nenhum de nós e digo nenhum de nós da rua. Não sei dizer para o senhor se alguém da rua algum dia fez mal para eles, sei que a gente nunca fez, mas acho que alguém fez sim, eles não iam ficar bravos assim à toa, deve ter algum motivo que a gente não conhece, vai saber. Sei que eles ficam bravos só de ver a gente, doutor. Não precisamos fazer nada, nem amanhecer na frente da lojinha deles, basta eles nos avistarem e pronto, já fecham a cara, mordem os dentes, começam a resmungar e voltam para dentro ou mudam de calçada quando estão a caminho de algum lugar. Mas não é por isso apenas que digo que não são gente boa doutor, digo isso porque já fizeram umas maldades para a gente aqui da rua. Há várias histórias, mas a que mais me deixa aborrecido foi a que aconteceu com um irmão nosso que já se foi. Não é que se foi por morte, foi para arrumar outro lugar para ficar e foi por causa deles. Fico até sem graça de falar, doutor, porque parece que estou fazendo fofoca, mas é uma conversa nossa e o senhor já é amigo, isso já deu para perceber, sim senhor. Mas então doutor, naquela época a gente tinha acabado de chegar por aqui e ainda não tinha um lugar comum para dormir. A gente estava começando as amizades que temos hoje e dormia uma noite em um lugar, outra noite em outro e assim a gente ia levando. Sabe, isso era para poder encontrar um lugar por aqui em que a gente atrapalhasse menos e desse menos problemas. Já é difícil ficar até tarde para arrumar um lugar que tenha um cobertinho que seja para a gente poder se encostar dormir uma noite curta. O duro é quando a gente acorda, porque dormimos pouco e tem vez que a claridade do dia não é suficiente para a gente acordar, aí, quando o comerciante abre o estabelecimento, ele dá de cara com um bando de nós estirado na frente da porta de entrada. Não deve ser fácil para eles também, doutor, começar o dia desse jeito, com um monte da gente bem na porta da frente, bem no começo do dia de trabalho, todos sujos e cheirando mal. Ainda que a gente se controla um pouco doutor, mas tem turma aí que faz as necessidades no lugar em que dormem. Imagina o senhor abrir a loja do senhor e dar de cara com toda aquela lambuzeira! Nada fácil isso, sim senhor. Então, naquele dia, a gente dormiu na frente desta lojinha, naquela época tinha uma cobertura de lona que ficava baixada à noite. Estávamos em uns quatro irmãos e nos amontoamos lá. Era uma noite bem fria, devia ser inverno pesado, e a gente se amontoou com pedaços de papelão e jornal que a gente tinha arrumado. O sol nem tinha começado a iluminar o mundo e eu ouvi um barulho de chave virando a trava da porta de correr " dessas de ferro que correm para cima e ficam enroladas " e uns cochichos do outro lado. Tudo foi muito rápido, mas deu tempo de eu dar um pulo e arrastar mais um irmão comigo: o dono da loja, num só golpe, rolou a porta para mais da metade, dando um grito de bicho, enquanto a mulher dele, com raiva na cara, jogou um balde de água fervendo bem onde a gente estava. É doutor, isso mesmo, é para ficar assim mesmo de boca aberta, ela jogou a água mesmo, nem deixou cair, jogou com tanta força que até o balde voou das mãos dela. Não esqueço, doutor, aquela água fumegando voando para cima do nosso irmão. O outro irmão assustou com o barulho e ainda conseguiu dar um pulo para frente, ainda deitado, parecia um sapo, e ganhou um pouco de água fervendo nas pernas, mas o outro irmão, doutor, ah coitado dele, ele era de idade já e não conseguiu fazer muito mais que levar as mãos na frente da cara e chuá, caiu tudo em cima dele. Caiu na cara, nos braços, no peito, nas partes, nas pernas, só não deve ter caído nas canelas e nos pés, mas a cara foi onde mais caiu. Parecia de propósito, como se o homem tivesse falado para a mulher, antes de abrir a porta: “Joga bem ali que é onde vai estar a cara do maldito!”. Doutor, esse homem gritava, mas gritava tanto que doía na gente. E, acho que pela idade e pela dor, não conseguia sair do chão, ficou lá se debatendo feito louco e gritando igual porco antes da punhalada. Saía fumaça dele todo, a pele começou a descolar, parecia que estava derretendo, sabe, e o homem gritava e gritava. A gente não sabia o que fazer, doutor, não sabia se corria, se acudia, se brigava, então, a gente começou a gritar por ajuda: “socorro, socorro, acode, acode!”. Foi o outro irmão, que levou água fervendo nas pernas que fez alguma coisa, acho que pela dor que ele sentia, se jogou na frente do irmão deitado, como se o protegesse de outro banho daquele, e tentava levantá-lo, mas a gente percebia que ele gritava ainda mais quando o irmão colocava as mãos nele. Doutor, tamanha foi a malvadeza e o sofrimento do irmão que o casal deixou de ter aquelas caras de raiva e satisfação e ficaram aterrorizados, congelaram e pareciam não acreditar naquilo que haviam feito. Eu consigo me lembrar de ver um começo de choro na cara da mulher, mas o terror era tanto que nem chorar ela conseguia. Foi o homem que, tremendo, deu uma passada de olhos na gente e, também num só golpe, baixou a porta e a trancou do jeito que pôde. Como é, doutor? Ah, a ajuda? Hupf! Ninguém vinha doutor, ninguém! A gente gritava, o coitado urrava e ninguém vinha. Não era tão cedo assim, já tinha gente acordada, tinha gente na padaria do outro lado da rua, mas ninguém vinha, doutor. Depois de um bom tempo veio o dono da padaria. Não sei se demorou para ouvir, ou ficou decidindo se ia ou não ia, mas foi. Ficou atrapalhado e não sabia o que fazer. Depois de um tempo ele voltou para a padaria e ligou para a ambulância. Aí o senhor já viu, mais outra vida se passou até chegar a ambulância " pode falar o que for, doutor, mas quando é para atender gente como a gente, ninguém tem pressa, nem a ambulância, que veio calada e só começou a gritar depois que virou a esquina, isso eu mesmo vi. O resultado de toda essa demora, mais o frio que estava, fez com que a água esfriasse e o irmão, com toda aquela carne danada, começou a tremer. Acho que o homem começou a congelar, porque ele não mais se debatia, ele tremia miúdo, apertado, sabe. Ah doutor, que tristeza! Um homem, naquela idade, nessa situação que a gente vive, ter que passar por aquilo. O coitado teve que pagar uma conta que não era dele, vai ver eram outros que tanto sujaram a frente daquela loja e irritaram o casal. O fim disso foi que ele foi levado pela ambulância, o outro irmão que ainda ajudava garantiu que ele ainda estava vivo, porque se mexia e os médicos estavam fazendo um monte de coisas para cuidar dele, mas eu digo a verdade: parecia morto, Deus o livre! Soubemos uns dias depois, pelo dono da padaria, que ele estava ainda no hospital e que estava melhorando, mas foi só isso que soubemos, não sei se era verdade ou se foi só para não causar raiva na gente e aliviar a situação do casal em relação à vizinhança, que podia querer esfolá-los, ou para aliviar a culpa deles mesmos. Sei que nunca mais soubemos daquele irmão, o tempo passou e o casal age como se nada tivesse acontecido, continuam com raiva da gente, esbravejando e tudo mais. Fazer o que, doutor? Essa é a vida! As pessoas não têm paciência, não têm mais gentileza, têm raiva fácil, por qualquer coisa que seja, e acham que estão acima dos outros só porque tem mais que os outros. Mas não há de ser nada! E é por isso, doutor, que eu lhe disse que o senhor é uma pessoa boa e que não tem ideia do bem que faz apenas com essas conversas, a ouvir minhas bobagens, eh-he, sim senhor! E o senhor por aqui, a dona Mercedes, o Cidão, seu Mané e tantas outras pessoas é que fazem daqui um lugar bom para a gente morar. A beleza de um lugar é feita pelas pessoas que nele vivem, doutor. Pode acreditar, já vi lugares bonitos que eram feios, e lugares que pareciam lixo, mas eram bons de viver. O mundo está difícil para todo mundo, doutor. Dizem que vamos ficando velhos e começamos a reclamar das coisas, mas não sei se é bem assim, acho que as coisas têm piorado mesmo. Tudo já teve seu tempo bom, até eu, eh-he, mas agora parece que a vida do outro não importa mais, nem estou falando de conviver de perto com o próximo, mas de ao menos respeitar sua existência, sabe?
Mas tudo bem, doutor. Já estorvei o senhor por demais e já está tarde. O senhor fica bem aí com sua geladinha que vou me achegar com os irmãos para comermos alguma coisa. Boa-noite, doutor, até mais ver! Se Deus quiser, sim senhor, sim senhor.
© 2015 Rafael Castellar das Neves |
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Added on December 4, 2015 Last Updated on December 4, 2015 AuthorRafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
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