A Arte de ViverA Chapter by Rafael Castellar das NevesHá algum tempo, não muito, num sábado, minha mãe veio a São Paulo com amigas de trabalho, professoras, em uma excursão à região da Rua 25 de março, para as tradicionais compras populares. Aproveitamos a oportunidade para nos vermos e marcamos um encontro, após as compras é claro, no Mercado Municipal, para um saboroso e gordo lanche de mortadela. Considerando o trânsito, peguei meu carro e me pus a caminho de lá bem antes da hora. Isso mesmo! Para quem não sabe, fica aqui a dica, São Paulo, aos sábados, entre as dez e quatorze horas, tem trânsito muito complicado, principalmente na região central e suas principais vias de acesso. Trânsito este talvez não tão divulgado pela falta de compromissos laboriosos que realmente, e infelizmente, são os que valem alguma coisa hoje em dia em nossas vidas. Mas lá estava eu, em meio a tantos outros, me arrastando pela Avenida do Estado, cada vez mais lento conforme me aproximava da Avenida Senador Queirós, conversão para o Mercado Municipal, a partir da qual, diga-se de passagem, seguindo adiante, nada havia senão o ondulado e falho tapete de asfalto. Mas como dizia, lá estava eu, no vai e para, passando sob o viaduto da linha vermelha do metrô, a olhar para os lados, para os cantos, para as pessoas " mania minha " e, entre imundices e subumanidades, me deparei, bem ao meu lado, com uma barraca. Não um barraco, mas uma barraca, feita por um emaranhado improvisado de arames, cordões, canos de ferros descartados e tortos cobertos por uma mal remendada lona amarela, no tradicional estilo canadense. Era uma barraca bem comprida, o que também me chamou a atenção, e estava rodeada por bugigangas, lixo e artefatos de uso inexplicável, mas prováveis sentimentos e valores compreensíveis. A extensa vida útil da lona lhe permitia uma transparência sutil e desfocada, mas suficiente para permitir identificar os contornos das pilhas de objetos " e quantas ", aparentemente mantidas como mobílias de uso e decoração. Em uma das extremidades, talvez a que pudesse ser chamada de fundos, havia uma pequena fogueira sob algo que parecia uma panela fumegante, pendurada a uma rústica armação de ferro. Mas ninguém havia. Talvez estivessem dentro de um dos cômodos da barraca a conversar, ou estirados a dormir " o que não se podia confirmar nem mesmo pela transparência ", ou simplesmente tivessem saído, mas não se via uma alma vívida. Entretanto, era na outra extremidade, na que seria a entrada, que estava o que mais me chamara a atenção e muito me surpreendeu em toda esta cena, a ponto de me fazer perder a atenção para o que fazia, conduzir meu carro ao encontro da minha mãe: na ponta da barraca, cuidadosamente dependurado de forma a decorar a fachada, havia um quadro! Um quadro pequeno, gasto pelo tempo e pela descuidada exposição ao clima. Quase não dava para reconhecer a pintura em si, mas via-se que era uma cena rural, o retrato de uma casa campestre ao lado de um pequeno lago. Enfim, era um quadro, um quadro dependurado na entrada de uma barraca improvisada à margem do Rio Tamanduateí, ao lado da Avenida do Estado, salpicada por detalhes e gostos que pudessem lhe atribuir a mínima sensação e aparência de lar, extrapolando sua essência de abrigo. Tudo foi muito rápido. Tão logo as buzinas me alertaram da distância aumentada entre meu carro e o da frente, tive que continuar. Apesar de parecer bem instalada, não estava mais lá na segunda-feira seguinte e nunca mais a encontrei, nem o quadro. Ainda os procuro quando por lá passo, mas ficou apenas na lembrança. A encantadora e deliciosa lembrança de encontrar a magia da arte naquelas vidas, que só fez representar e enaltecer outra obra ainda maior: a arte deles em viver, que leva ternura onde predomina a dor e o descaso! Ah, o lanche com minha mãe foi muito bom!
São Paulo, 07 de novembro de 2010.
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Added on December 1, 2015 Last Updated on December 1, 2015 AuthorRafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
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