![]() A Sagrada RefeiçãoA Chapter by Rafael Castellar das NevesO sol já passava do meio do mundo quando ele retomou os ingredientes, disposto a cumprir a tão espedaçada promessa de uma decente refeição dominical. Os ânimos enrijeciam os nervos e a faca descia lenta, as mãos se arrastavam desajeitadas e a atenção não existia, mas a receita seguia.
Arrastou o tempo o quanto pôde e, entre desligares de fogo e pequenos afazeres inventados no último momento, conseguiu preparar seu prato, com o acompanhamento já frio.
A mesa estava posta e decorada com migalhas das últimas duas semanas. Sentado à ponta, com um garfo torto escorado à mão, viu-se um rei sem reinado.
Ouvia as gargalhadas das crianças brincando no pátio gelado sob o pálido sol de inverno que custava a adentrar pelas vidraças embaçadas e cortinas encardidas. O ar era velho e denso de angústia e vapores oleosos das panelas cansadas e condenadas ao gotejar da pia transbordante.
Olhou em volta: tudo era o que sempre fora, como sempre estivera, no mesmo lugar, do mesmo jeito que deixara. E o coração se espremeu quando, relutante, conformou-se que somente compartilharia o tão digno momento da refeição com o chiado rouco do velho rádio a pilhas na cozinha.
Derrotado, fraquejou a mão e tombou o garfo. Abandonou o prato gelado na despensa e o corpo cansado aos trapos sujos no canto da cozinha, com apenas um pedaço de pão velho que lhe arranhava a garganta seca ao descer contorcido. E a distante possibilidade de uma fagulha, sequer, de dignidade, desaparecera ao chegar das primeiras lágrimas já tão companheiras.
São Paulo, 03 de agosto de 2009.
© 2015 Rafael Castellar das Neves |
Stats
77 Views
Added on November 30, 2015 Last Updated on November 30, 2015 Author![]() Rafael Castellar das NevesSao Paulo, Sudeste, BrazilAboutNascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..Writing
|